Hoje, tinha tudo para ser um dia de trabalho como os outros. Mas, na minha atividade pericial no serviço público, fui surpreendido com um presente. A última perícia do dia me reservou uma bela e grata surpresa. Era um caso simples. Daqueles que não necessitavam de perícia, sobretudo num período de pandemia. Os documentos médicos, os autos processuais e a apresentação da pericianda falavam por si só. Estávamos diante de uma Demência de Alzheimer em estágio avançado. Logo, a cognição era bem comprometida. Ela mantinha uma motricidade mais limitada e apresentava um importante comprometimento de todas as funções cognitivas. Ela estava inquieta e moderadamente agitada. Ela não conseguia estabelecer um discurso coerente. Ela se levantava recorrentemente da cadeira e mostrava-se angustiada e assustada. Imagino que sair de casa tenha causado essa piora da psicomotricidade, visto que, aquele ambiente desconhecido, de fato, representava algo hostil. Colhi alguns dados e chamou-me a atenção uma fala da sua filha, requerente do processo. Ela disse que sua mãe era natural do RJ e que era passista da Beija-Flor de Nilópolis. Até o falecimento do seu pai, esposo da pericianda, eles aproveitaram, juntos, vários carnavais. Ela desfilou em alguns deles pela Escola de Samba. Logo após esse comentário, a agitação da pericianda aumentou de modo que nem a filha conseguia contê-la. Eis que abri o meu App de música e busquei uma samba enredo antigo da Beija-Flor. Assim que o som começou com o chamamento característico do Neguinho da Beija-Flor, ela se levantou, sorriu e passou a sambar de maneira bela na minha frente. Ela sambou toda a música e manteve o sorriso até o fim da canção. Eu fiquei parado e admirando aquela expressão de afeto. A música acabou e ela voltou para o estado inquieto de antes. Terminei o atendimento e me despedi das duas. Compreendi que nem as demências mais avançadas são capazes de apagar por completo o amor que contagiou, no passado, a vida das pessoas.
Régis Barros